Os contos de Mário Gerson são portadores de cenas familiares, muitas delas acionadas pela retrospecção de menino que interroga a passagem do tempo quando em conflito com a presença da morte iminente. Da mais variada extração são os personagens que permeiam este universo: o coveiro Aguiar Almeida, de Uma morte silenciosa, que narra a história trágica de Marta Batista e Baltasar Noronha (boêmio e exímio jogador de cartas), o caminhoneiro Nelito do excelente O nó do enforcado, o relato existencial, o drama interior do bodegueiro, inexperiente comerciante Antonino Correia, alcançado e abatido pela ‘tristeza em forma de angústia’, um corpo-a-corpo com a desmedida melancolia do existir; ressalte-se, que o personagem Nelito dá o ar de sua graça, também, em Os gatos de Madame M., uma narrativa primorosa, que mapeia alegoricamente alguns passos da idosa viúva de um ex-combatente da II Guerra Mundial e seu exército de bichanos, o funeral de Madame M., acompanhado por mais de uma centena de gatos, possui um efeito fantástico, a plasticidade da cena como desfecho da ação narrativa é cinematográfica. Aqui cabe, trazer à tona, certo parentesco do escritor mossoroense com a genialidade do ficcionista cearense-universal Moreira Campos, autor de narrativas perfeitas em sua correção técnica e inquietação formal, e, sobretudo, na sua visão ontológica da realidade, como é o caso das assustadoramente belas Lama e folhas, Os anões, Os doze parafusos, A gota delirante, Profanação e Dizem que os cães vêem coisas, entre outras; no caso específico do enredo e da técnica presentes em Os gatos de Madame M. vale a aproximação com D. Adília e os seus cachorros, do autor de o Puxador de terço. Em Gratidão de uma alma, o casal Salomão e Inácia acalenta o sonho de conhecer a pessoa que, num gesto de extrema bondade enterrou o seu filho Antônio – numa das curvas do destino, o pobre casal realiza o seu intento ao se defrontar com a boa alma que praticou a ação, Salvina Oliveira de Souza; e ainda, dentro da Da crônica dos comuns, a figura do pescador na pessoa de Carlo Masquenha, filho do velho Pablo, apaixonado por Marta, filha de Antonino, mais uma trágica história de amor que se desenrola em Sobre as ondas do mar.
O suspiro do inimigo é um inventário da fugacidade do tempo e da ligeireza dos amores. O transe narrativo que se desenrola em suas páginas desmonta os trajetos lineares do existir, entrelaçando caminhos e eriçando assombros. Das pequenas banalidades da existência, o narrador glutão confirma sua força alegórica e seu poder de incendiar consciências narrativas; tal força atrelada a tamanho poder jorra do itinerário dos outros entes que circulam no segundo tempo desse afiadíssimo suspiro, denominado Das marcas interiores. Em primeiro plano, a figura patética e comovente do desempregado Ulysses, totalmente impregnado de solidão, que nem mesmo a força ‘inspiradora do mar’ revigorava seus passos, ele, estático, completamente inerte, ‘via a vida passar rente à morte’, um grande conto; em A mão e a pedra, destaque para os gatos, mais uma vez, e para presença envolvente de Simone, uma trama envolta em mistério e encantamento; em Junín, realce para a sólida amizade entre Otávio e Junín, num tom de retrospecto, acompanha-se o destino trágico do personagem que denomina o conto; Jorge e os outros, o indivíduo às voltas com a solidão e o desamparo, Jorge e Lu nos braços lisos da vida, um destino nunca é mais que um destino; e por fim, o conto mais longo, O drama de um autor, um bem acabado exercício de reflexão sobre as agruras de um escritor em permanente conflito com a sua função. A feição desta narrativa é delineada pela potência da ironia, numa explosão de sarcasmo e situações, por vezes, caricatas, o que em momento algum enfraquece o teor ficcional do relato, muito pelo contrário, revela o domínio do escritor Mário Gerson e sua virtuosidade narrativa sem reticências e, muito menos, repetições exaustivas.
Mário Gerson, em suas mediações ficcionais, sabe construir mundos de diferentes maneiras; sabe habitar as redondezas alegóricas de variadas ordens; sabe evidenciar com o olhar carinhoso e ao mesmo tempo implacável a corrosão dos seres em depuradas sínteses artísticas; sabe, como bom prosador, potencializar as fraquezas humanas tão coladas no destino franzino de cada indivíduo; é por isso que sua prosa equilibrada, formosa, límpida e densa de um lirismo que beira, vez por outra, a tragédia intensifica os rumores da vida e o coloca como um verdadeiro artista do conto, esta arte tão intricada, como atesta o escritor Ivan Ângelo: “Conto é muito difícil de escrever, mas é o que me fascina. Todo mundo pode escrever um conto, mas como escrever um conto que pouca gente pode escrever? Esse é o desafio”. Com O suspiro do Inimigo, Mário Gerson superou, e muito bem, a provocação do contista.
R. Leontino Filho
Poeta e ensaísta
ISBN | 978-85-89888-44-8 |
Número de páginas | 74 |
Edição | 1 (2011) |
Formato | A5 (148x210) |
Acabamento | Brochura c/ orelha |
Coloração | Preto e branco |
Tipo de papel | Offset 75g |
Idioma | Português |
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