Pensar o fenômeno da liberdade permite realizar não somente uma liberdade possível, como também, e principalmente, dá esperança num sempre ainda-não devir, um futuro, aplacando, assim, precária, intermitente e provisoriamente o nosso desespero diante da vida e das coisas. Somente somos livres, efetivamente, na ação política.
Somos todos livres para começarmos, ao nascermos, e para recomeçarmos, no agir e pensar no mundo e sobre o mundo e sob o mundo.
O fenômeno da liberdade se realiza e se confunde com o próprio espírito humano, nunca imune às intempéries do desespero. Desesperamos sempre. Mas também esperamos sempre que o sol nasça amanhã num novo dia de possibilidades. Esse esperar, mesmo no desespero, é fé e esperança. O futuro que preparamos diariamente não é somente uma promessa: é a promessa única de possibilidades futuras.
Pensar, e não simplesmente teorizar, é a ação do espírito que se materializa na vida mesma, como ação política (compartilhada). Do mesmo modo que seu mestre, Heidegger, Hannah Arendt concebe o pensamento como um lembrar e relembrar: somente os seres históricos, que nós mesmos somos, são e somos capazes de lembrar e relembrar. Temos memória porque temos história. Temos história porque temos memória.
O plasma e a matéria do espírito humano são seus feitos (ações históricas). Um pensamento contemplativo por si mesmo nada tem de “real” no sentido de uma efetividade. Somente é efetivo o pensamento que aparece em seu fenômeno: uma aparência compartilhada, porque compreendida na realização do ato de pensar-agir.
A imaginação, como faculdade humana, plasma os fenômenos no sentido de dar uma “forma” (sentido) ao mundo pensado, lembrado, relembrado. A imaginação, assim, é o movimento da memória. Imaginar dá imagem à memória, trancafiada num passado petrificado pela tradição. A tradição quer permanecer. Nesse querer permanecer, a tradição relega ao esquecimento coisas e acontecimentos originários que somente o pensamento pode trazer novamente à vida do espírito e ao espírito da vida.
Não temos acesso à causalidade ou às causalidades advindas de nossos atos. É necessário um contador da história, um narrador que, ao narrar, lance luz sobre vetores históricos imprescindíveis para a continuação e consumação de outros eventos históricos, inacessíveis ao ator no ato de sua ação e ocultados pelo esquecimento tradicional. Não podemos prever o futuro de nossos atos.
Nunca pensamos duas vezes um mesmo pensamento. Mas podemos pensar mil vezes sobre uma mesma coisa. A mesma coisa, no entanto, revela aspectos não visados ou não pensados sobre ela mesma. É simples: quando pensamos podemos rememorar aspectos que permaneceram impensadas pela tradição.
O pensamento, portanto, tem o poder de “mudar” o passado e o futuro: o pensamento faz história e muda a história. A história, de modo incontornável, também muda o pensamento. Porque quando é natal no mundo, quando nascemos, nascemos num mundo prévio, antigo e pronto a nos receber. O mundo está sempre pronto para nós. Nós, ao contrário, não nascemos preparados para o mundo: é o mundo que nos prepara e prepara, muitas vezes, a indigesta refeição da vida. Mas sempre há a possibilidade de, num mundo deserto e desolador, encontrarmos oásis. Um oásis é um dia de feriado do desespero que nos permite, a cada dia, esperar por um amanhã. O amanhã é a casa da esperança. A esperança é gestante e nutriz do amanhã. Compreendemos isto.
Compreender, contudo, não é simplesmente aceitação ou rejeição de algo. Compreender o passado nos abre para uma possibilidade de futuro. O “perdão” ao totalitarismo não é uma aprovação ou rejeição a ele: é um seguir em frente, um seguir vivendo, não por ele nem apesar dele, mas “acima” dele: superação. Superamos a não mera, mas suposta, causalidade dos eventos históricos quando recomeçamos. Nascemos (começamos) uma única vez, mas podemos renascer (recomeçar) muitas vezes, em sendo livres, em agindo, em pensando.
A falta de liberdade ilumina o fenômeno da liberdade: diante da ausência de liberdade somos obrigados a pensar sobre a liberdade. Sem liberdade, desconfiamos da solidez e durabilidade do mundo, que se fragmenta e perde sua “confiabilidade e estabilidade”.
Como bem pensou Heidegger, a camponesa confia em seu mundo, seu campo. A falta de liberdade desertifica o campo: a casa da camponesa, em sua concretude, rui.
Uma camponesa pode se situar e se sentir em casa no seu campo. A casa do pensador, contudo, é vazia e solitária e singular como o próprio pensador. O pensador é a casa do pensador. Politicamente ou poeticamente, em compreendendo, habitamos um mundo que nos habita a muito mais tempo do que nós mesmos nos habitamos.
Somos inéditos e inaugurais quando nascemos. Somos inéditos e inaugurais quando pensamos. O totalitarismo foi um evento histórico-político inédito, inaugural de uma não-liberdade também inédita. Parece, então, que há uma familiaridade, uma intimidade singular entre a liberdade e o pensamento. Sem liberdade é impossível pensar. Sem pensamento a liberdade se torna interditada.
A fenomenologia, como método, assume uma postura ou atitude fenomenológica, em contraposição à atitude natural, que pressupõe a realidade das coisas. Suspenso o juízo sobre a realidade ou não das coisas, ou acesso à realidade essencial das coisas, o método fenomenológico propõe uma suspensão de juízo sobre a realidade (ou não) das coisas. A partir desta nova atitude do pensamento, as coisas se mostram somente em seus fenômenos.
Autocontraditórios como somos, e auto-contraditoriamente, somos compulsoriamente lançados num mundo para sermos livres. É que nascemos, e nascer é somente o início, o primeiro fenômeno desta imprevisibilidade originária que nós mesmos somos. Não é fácil recomeçar, com tantas intempéries e tempestades diárias, mas os desafios diários nos obrigam, fenomenicamente, a recomeçar a cada dia. A cada dia renascemos, com um propósito.
Filosoficamente, pré-politicamente, somos irremediável e incontornavelmente livres, porque pensamos, imaginamos e lembramos. Ao pensar, imaginar e lembrar, contudo, podemos fazer história e política. A arte e a filosofia são os oásis nos quais podemos descansar de nossos desespero e mediocridade cotidianos. A arte e a filosofia podem nos dar um propósito, mas nunca um objetivo.
O EDITOR
Claudio Donato
Número de páginas | 150 |
Edição | 1 (2017) |
Formato | A5 (148x210) |
Acabamento | Brochura c/ orelha |
Coloração | Preto e branco |
Tipo de papel | Offset 75g |
Idioma | Português |
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