Acho que é como um parque de diversões. Naqueles joguinhos aparentemente inocentes onde a gente é levado a escolher alguma caixa colorida pra ver se ganha um prêmio. Ou então dar uns tiros naqueles patos que ficam circulando em frente a um painel pintado, simulando uma vasta floresta. Geralmente o que ganhamos nada mais é que um brinquedinho ordinário.
E nem sempre a gente acerta.
Aliás, o erro é mais comum. E não estou aqui querendo fazer tipo. Bancar o herói-solitário-com-ares-falsamente-melancólicos; um chorão. Não se trata disso. Falo das regras do jogo: as chances do erro são superiores, sempre. É o que dá o charme ao vencedor. O motivo pra que ele comemore seu destino ou sua pontaria.
Tudo vem da escolha. Do ato em si de apontar o dedo pra algo. Ou apertar o gatilho na hora certa. E torcer, rezar. Por vezes, a gente até supõe que tem intuição. Uma capacidade de acertar no alvo. Acreditamos que, seguindo alguns rituais geralmente infundados, conseguiremos atingir nosso intuito. Um brinquedo bacana, mais esperanças ou novas perspectivas, enfim. Isso tem a ver com inocência. Com escolhas claras e concisas. Que te levem a um lugar que você determinou lá nos seus primeiros passos. Tímidos, tontos ou certinhos. Isso tem a ver com pureza e crença.
Não sou dos piores. Ainda acredito em muita coisa. De vez em quando tento acertar os patos. Possuo minhas crenças totalmente despropositadas: mas levá-las comigo é uma atitude essencial. Noutras eu perdi a fé. Numa boa também. Sem draminhas imbecis.
Um outro tanto dessas convicções “rodopiou” em meu imaginário e na minha vida. Ou seja, essas últimas foram desqualificadas, destruídas, aniquiladas.
De forma consciente – e nem um pouco tranqüila -, converti velhos valores em lixo. Cuspi e desmoralizei da melhor forma possível. Somente pra depois constatar que elas voltariam mais fortes e sólidas; firmes. Isso fica claro em coisas que escrevi, coisas que ainda guardo por aqui.
Quando eu li o livro Anfetaminas e Arco-Íris, do Ediney Santana, foi assim. Fiquei entre intrigado e receoso. Tava tudo lá: a crença, as referências de sempre – dos Doors ao Whitman -, a leveza e a sagacidade de quem escreve. Não só escrever, mas escrever e sacar tudo ao seu redor de maneira absoluta. Os poemas me trouxeram velhas lembranças, todas boas. De um tempo em que a gente sabia que o mundo girava em torno de nossas cabeças e corações. Éramos o centro do mundo, o motivo pra que ele ainda não estivesse completamente destruído; éramos um foco de resistência, berrando nossas coisas de algum lugar pequeno do mundo – uma cidade do interior, ou um quarteirão do Cabula, por exemplo.
Não falo isso querendo fazer comparação com idades, adolescência, fases onde a rebeldia é analisada de forma coerente pelos estudiosos etc. Eu falo de mim. Um cara que barganhou um bocado de coisas. E que nem sempre acertou – mas conseguiu uma visão particular de mundo; uma confusão adquirida, cultivada às vezes. Falo de um sujeito que, ao ler coisas como "Um invisível amigo beijou-me a face / durante a guerra / do que sou e do que minha estupidez / Leva-me a ser. / Sou a contradição absoluta dos meus / crimes civilizados / Só acredito no que pode ser destruído, / Apavora-me a certeza do / Infinito, nada vai além desse coração / em descompasso com o tempo." (MERGULHOS) vislumbrou que é possível. Que se enxergou em muitos poemas do Ediney.
Em todo o livro a gente constata que aquele tipo de rebeldia terna, carregada da mais necessária humanidade, ainda pode render bons frutos. A possibilidade de ler os poemas ora longos, ora curtos e diretos -"Idealizo o ser / amado / como quem esquecido / de si / naufraga belezas" (A.M.O.R) – nos faz pensar e sentir. Em outros, o que impera é o companheirismo declarado. Textos feitos para amigos e parceiros surgem aqui e ali, reforçando a minha “tese” de que Anfetaminas e Arco-Íris foi concebido nisso que chamo de trincheira: um lugar que, mesmo desprovido de chances e facilidades, une artistas, poetas, escritores e outras figuras, numa tentativa de afirmar sua existência; cada um a sua maneira, com aquela certeza de que o mundo deve ouví-los.
O escritor experimenta. Brinca de concretista e acerta. Dedica seus escritos a Marley e tira um sarro das beatas de mente obtusa. Mostra-nos uma outra Santo Amaro. Menos óbvia e estereotipada; muito mais poética. Demonstra segurança ao brincar com elementos lisérgicos, geralmente muito propensos a erros terríveis e absurdos – suas “viagens” tem ida e volta; são prazerosas.
O autor também joga. E atira bem no tal parque de diversões. Ele conta menos com a sorte e mais com um talento incomum pra mostrar que crenças são viáveis, ainda que duvidemos delas. Ele saca que citar Bob Marley, Torquato Neto, homenagear amigos, falar de uma pracinha em sua cidade, ironizar padres e afins, ainda é uma forma de resistir. Mesmo que quase todo o mundo ache isso anacrônico – até eu, de vez em quando; culpa das barganhas que andei fazendo.
Ele sabe que questionar faz parte. Que o essencial suprime qualquer noção de tempo, espaço, década, geração, modismo ou época. Ediney Santana mantém os pés firmes no tornado que deve sacudir a velha Santo Amaro de vez em quando – nos domingos mortais de silêncio televisivo; nos dias de chuva ácida; nas noites em que duvidar do futuro é premissa, ato necessário.
E é isso que faz o seu livro, Anfetaminas e Arco-Íris, ser uma obra bonita e singular. Mesmo que sejam poucas páginas e que a parte gráfica não seja digna de seus escritos, sugiro que arrisquem. Acho que vale a pena. E creio que nesse parque de diversões tem um grande prêmio – a tentativa em si, o risco. Pros que tem coragem.
Gustavo Rios
Número de páginas | 59 |
Edição | 3 (2015) |
Formato | A5 (148x210) |
Acabamento | Brochura c/ orelha |
Coloração | Preto e branco |
Tipo de papel | Offset 90g |
Idioma | Português |
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