A categoria histórica-política-social e ideológica GÊNERO desenvolveu, entorno de si mesma, um arcabouço com sofisticada diversidade de novas categorias, comportamentos, subversões e adereços. Tamanha rede emaranhada de efeitos sociais desta categoria, nos obriga a reavaliar os reais benefícios de sua fundação e existência, além de nos fazer criar constantemente estratégias de combate às violências alicerçadas na naturalização de gênero como um marcador social de fundamental influência e poder nas sociedades.
Gênero é essencialmente uma relação de poder, estabelecida a partir de parâmetros relacionados aos caracteres sexuais primários e secundários. E tão arbitrária enquanto à categoria raça baseada em características físicas específicas de grupos humanos, especialmente a cor da pele. Embora já possamos admitir que essa arbitrariedade seja bastante discutível.
O livro “Sexualidade, Gênero e Diversidade: Práticas, Currículo e Saberes” narra os desafios e experiências entorno de estratégias que previnam e combatam a negação de direitos das pessoas pela sua localização no sistema vigente de gênero. Como nos apontam alguns artigos deste livro, o gênero que tomamos atualmente como matriz ideológica ocidental deve ser lembrado sempre como uma categoria racializada, a priori, não criada para todas as pessoas, que foram esvaziadas do próprio sentido de humanidade e de si mesmas para possibilitar a objetificação de corpos humanos. A principal exemplo do que ocorreu com povos africanos escravizados.
Separar gênero de sexo é crucial para compreendê-lo enquanto um sistema falido. Focoault nos alertou de que o corpo não é o destino. E a que destino ele se referia? O corpo não determina nosso gênero, mas independente disso, é o corpo que carrega o destino das opressões provocadas por ele. A verdade desanimadora é que nosso corpo não passará despercebido, seja pelos privilégios por corresponder ao sistema hegemônico branco ocidental de ser humano e “civilizado”, seja pelas opressões e violências sofridas pelas pessoas que transbordam suas existências deste regime de uma verdade ocidental.
Os limites do corpo são brancos, e esses limites se estabelecem em diversos parâmetros que nos dirá como é o corpo da beleza, da inteligência, do sucesso, como também irá demarcar com precisão o corpo do bandido, da prostituta, da marginalidade, do fracasso.
Se ser homem e ser mulher são ideais inalcançáveis para qualquer pessoa, ser homem negro e ser mulher negra são tentativas estigmatizadas, a priori desumanizadas e que carregam o fardo de percorrer um longo caminho para fugir dos estereótipos, muitas vezes negando a própria existência e ancestralidade. O espectro “preto” entre qualquer um desses binarismos, será uma transição entre “fetiche” e “ameaça”, mas nunca homem e mulher...nunca verdadeiramente humano(?) A humanidade é branca, e segue os padrões brancos de feminilidade e masculinidade. Lança-se então uma corrida rumo ao inatingível.
O colonialismo, portanto, transcende as barreiras da exploração de um povo e da dominação territorial. Transformar as colônias em nações pseudo independentes, mas que continuam tomando como matriz civilizatória o colonizador, são, na realidade, marcas de uma colonização efetiva, que produz discursos, visões de mundo e conhecimentos que influenciam as práticas sociais. Sem essas ferramentas de poder extremamente complexas e estruturais, não seria possível a sustentação de uma dominação econômica. Prática criada, aprimorada e sistematizada no continente europeu e para qual serve a ideia ou ideologia do ocidente. Para Stuart Hall, discursos não podem ser reduzidos a interesses de classe, mas sempre operam em relação ao poder, seja para circular o poder ou contestá-lo, e quando se tornam efetivos são chamados de “regime da verdade”. As categorias de gênero, raça e classe são espectros fundamentais desta operacionalização do discurso ocidental para as relações de poder.
Mas a quem serve esta categoria e por quê? Vamos apenas lembrar que o que conhecemos sobre o mundo é basicamente a “história dos grandes homens”, uma construção de humanidade que tem como modelo fundamental o masculino grego. Desta forma, gênero aparece como uma ferramenta de poder e construção de uma identidade ocidental europeia. E foi às luzes do iluminismo que individualidade passou a se confundir com masculinidade, ou melhor, ser igualada a ela. Para muitos filósofos iluministas, o indivíduo tinha direitos naturais e universais de liberdade, propriedade e felicidade, fundando as noções universais do pensamento liberal. A individualidade seria considerada a essência comum a todos os seres humanos. Entretanto, este humano, indivíduo político e histórico era fundamentalmente masculino e branco.
Para compreender e solucionar o “emaranhado” provocado pelas normas e expectativas entorno desta categoria, a área de estudos dedicados a gênero vêm buscando novos significados e compreensões que questionam fortemente a essencialização e o inatismo desta categoria. Investigando-a sim como um marcador social que serve ao poder colonialista, racializado e que precisa ser questionado.
Porém, para desconstruir as raízes fundantes do gênero e suas ramificações, não devemos tomar como base apenas o próprio sistema ocidental e colonialista, afinal, este sistema jamais irá tão fundo na autocrítica o quanto será necessário. Para tanto, assumimos uma lente afroperspectiva para o mundo (NOGUEIRA,2012.) e nos despimos do paradigma único ocidental, construímos conhecimento como uma ação comunitária e como um compromisso ancestral, em contínuo fazer-fazendo. Exercendo uma verdadeira arqueologia dos saberes e das epistemologias para além das ocidentais. Nesta direção, são dados os primeiros passos para o que chamo, por enquanto, de estudos críticos afro-perspectivos das etnogeneridades.
Ameaçar a categoria ocidental de gênero, significa desestruturar algo muito poderoso, um grande alicerce para a hegemonia de apenas uma visão de mundo. Portanto é preciso denunciar que o racismo muito tem a ver com a manutenção dessas relações de poder.
No instante em que o Renascimento Africano se expande na África e na Diáspora africana no mundo, a categoria de raça vai caindo por terra e falindo enquanto argumento para a subjugação de determinado povo e sua descendência. E quanto mais percebemos raça como uma farsa da branquitude para que fosse possível a realização de um império mundial, a categoria de gênero entra junto em processo de falência. Ao abrirem os olhos para a ancestralidade, os povos irão resgatar o berço civilizatório de cosmovisões de mundo milenares e que nos (re)apresentarão possibilidades curadoras para a humanidade e para todo planeta terra.
Para compreender a real complexidade destas questões, este prefácio não será o suficiente, mas recomendo a todas as pessoas que me escutam ou me leem: “Não acredite, estude!”. Precisamos reagir diante de um verdadeiro “boicote” aos saberes diversos em favor de uma ideologia ocidental. Precisamos reagir ao epistemicídio ancestral, alicerce para o semiocídio ontológico que, por sua vez, é a justificativa para o genocídio físico.
Portanto, aproveitem os saberes compartilhados nessas páginas, e desde já, desejo que em sua leitura estejam semeados novos olhares para novos caminhos, a fim de construirmos juntos um mundo melhor para todas as pessoas, um mundo em que a diversidade seja parte integrante, necessária e fundamental de sociedades em plena evolução.
ISBN | 978-65-801-8720-1 |
Número de páginas | 410 |
Edição | 2 (2019) |
Formato | A5 (148x210) |
Acabamento | Brochura |
Tipo de papel | Offset 75g |
Idioma | Português |
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